Calças curtas

[#110] Há mais ou menos um século, bermuda era coisa de moleque. Homem barbado só usava calça comprida. Na Capital do Inferno, calças compridas duram o tempo entre a compra e a primeira lavagem, e só. Tá certo que lavagem encolhe roupa em qualquer situação, mas na Capital do Inferno a roupa encolhe mais ainda e nunca mais volta ao tamanho original. Calças compridas, só mesmo sendo novas. Pelo menos o caçula tem sorte, herda roupas novas do mano mais velho.

Sob um céu de reds

[#109] Quem disse que o inferno é vermelho? Eu! E sabe por quê? Por causa da difusão da luz do sol no ar denso desta amaldiçoada cidade. Durante o dia, o céu é cinzento. No final da tarde, ao invés de ficar azul pelo menos por uma meia hora, ele fica vermelho. A luz do sol se decompõe em várias freqüências, se difunde nas gotículas de água presentes na atmosfera, etc., etc., mas aqui essas gotículas não absorvem freqüências abaixo de 480 THz. E assim permanece o céu, até que escureça por completo, trazendo nostalgia aos torcedores colorados. Depois aparecem no Eco4Planet imagens do diabo em seu trono, à frente de um infinito céu vermelho, e as pessoas acham que é por causa do "fogo que arde no mármore do inferno". Mas não, é porque na Capital do Inferno o céu é assim mesmo, todos os dias. É a dura realidade. Nem o demônio agüentou mais ficar neste lugar, então foi embora e deixou apenas o caos de uma cidade sem lei, de um povo sem deus. Cá estou, abandonado à frente de um infinito céu vermelho.

Diga-me quem Amas

[#108] Quando eu descobri, não acreditei. Eletromagneticamente falando, se existe o pior lugar para viver neste planeta, esse lugar é a Capital do Inferno! Eu havia comentado, esses dias, sobre a camada de ozônio, que é mais estreita bem acima da minha cabeça. Achei isso um horror, mas não imaginei que pudesse existir algo pior. Eu soube que existe uma região, na atmosfera, onde a intensidade das radiações solares é maior, devido à proximidade do cinturão de Van Allen com a superfície terrestre. Se chama Anomalia Magnética do Atlântico Sul (Amas). Adivinhem, a Capital do Inferno fica bem no umbigo dessa região! Não é fantástico? É tão frustrante, que os satélites que pairam no céu cinzento da Capital do Inferno precisam ser revestidos por uma camada de não-sei-que-material para que não se desintegrem.

Isso não quer dizer que aqui o sol brilha mais forte (o que contraria tudo o que eu já disse neste maldito blog). Quer dizer que o "lado negro" do sol chega mais rápido aqui, e portanto chega em maior volume também. Eis a Capital do Inferno, transformando sonhos em pesadelos.

Quer saber mais sobre a Amas? Leia este artigo de Ângelo Antônio Leithold.

A evolução do ser humano

[#107] Eu estava pensando na evolução do ser humano. Dizem que a raça humana se adapta ao ambiente e, ao longo dos anos, o próprio genoma se altera. Assim, já perdemos os sisos e o cóccix, além de termos um apêndice totalmente inútil nas entranhas. Assim, parece que vamos perder as unhas, as pontas dos dedos, a boca vai diminuir, os olhos irão aumentar, etc. etc. Na Capital do Inferno, surgirá uma espécie diferente de ser humano, que talvez já nem seja mais considerado humano. Será apenas um ser, seja lá o que isso for. Aqui, a tendência à obesidade não será uma pandemia mas sim uma normalidade, teremos o corpo coberto de pêlos como um cão, a pele oleosa como a de um esquimó, seremos pecilotérmicos (só assim para suportar as bruscas mudanças climáticas), nosso sangue será cinzento como o céu que nos cobre, nossa faringe terá uma camada interna de isopor (gente, chimarrão é quente, queima a garganta, tem que proteger de alguma forma!) e voltaremos a usar escarradeiras porque nossos pulmões vão produzir muco desde o nascimento (e quem não passar o dia escarrando será enjaulado e posteriormente açoitado e escarrado em público). Ah, e não podia deixar de dizer, nossos genes incorporarão o botox.

Pronto, anunciei meu apocalipse.

Ninho de Barbie-girls

[#106] Quando o médico falou sobre a camada de ozônio, fui procurar mais informações no Eco4Planet (afinal, até posso morrer jovem, mas antes dos 30 é cedo demais) e acabei encontrando uma notícia de exatamente um ano atrás, publicada inicialmente no ClicRBS e depois num site de uma clínica estética. A notícia diz que a Capital do Inferno é o lugar que mais realiza intervenções estéticas em mulheres com menos de 18 anos.

Dizem que por aqui nascem deusas, e quem não mora aqui acha que todo bebê será uma Gisele Bündchen quando crescer. Vou te contar, é mentira. Além de branquelas, as pessoas daqui são obesas porque não se exercitam e têm dentes podres por causa do cigarro e do café. Como todo forasteiro cobra uma beleza sobrenatural dos sobreviventes da Capital do Inferno, as menininhas daqui se ofendem e se deprimem e, preguiçosas como são, acabam recorrendo à cirurgia plástica.

Em outros lugares, ninguém espera que as pessoas nasçam lindíssimas e morram sem rugas. Só aqui essa cobrança existe.



Para quem quiser conferir a fonte, que não é lá muito segura mas pelo menos "não fui só eu que disse": Estética Poa

A voz da verdade

[#105] Foi um médico, clínico-geral, que me falou: o fato de ser a Capital do Inferno também a capital do câncer de pele é devido à localização deste cu-de-Judas no globo. A Capital do Inferno está ao sul do sul do planeta, num dos seus quadrantes mais esquecidos, próxima da Antártida. Próxima, portanto, do buraco na camada de ozônio. Por isso o estado de onde o inferno é capital encabeça o ranking de incidência de câncer de pele no Brasil. É fogo, hein?! Com a sorte que eu tenho, posso dizer que nasci com a bunda virada pro buraco da camada de ozônio.

Peixe urbano

[#104] Estava no Facebook quando surgiu um anúncio num canto da tela: "Tá esperando o quê? Descubra o que há de melhor em sua cidade!" Como eu acho que nada presta neste fim de mundo, cliquei. Caí num site chamado "Peixe Urbano", que mostra um estabelecimento qualquer oferecendo um desconto no dia de hoje. As esperanças que eu havia criado foram por água abaixo e não pude me desiludir mais. Para ser bem imparcial, vou até copiar o texto que estava na página de hoje. Cada um se sinta livre para concluir o que quiser...


Assim como os japoneses são mestres em fazer sushi e os italianos mandam bem na macarronada, os gaúchos são feras na arte do churrasco. Tradição, requinte e conforto é o que a oferta Peixe Urbano traz hoje: 53% de desconto em Rodízio de Carnes + Bufê de Saladas + Acompanhamentos quentes no Sulina Grill (de R$41,90 por R$19,50).
Fato indiscutível: os gaúchos sabem preparar carnes como ninguém. Agora, imagine uma família que já se dedica há 16 anos em tornar essa experiência inesquecível? Com a tradição de seus antepassados italianos e alma genuinamente gaúcha, o Restaurante Sulina Grill oferece conforto e ambiente aconchegante em uma das melhores localizações da cidade, ainda disponibilizando um espaço diferenciado para ocasiões especiais.
A oferta de hoje é daquelas para vestir o babador: delicioso Rodízio de Carnes, com cortes diferenciados, incluindo cordeiro, salmão grelhado e outras 13 opções. Além de um farto Bufê de Saladas, com 35 opções e Acompanhamentos quentes como arroz tropeiro, polenta, bolinho de aipim, cebola empanada e outros quitutes. No restaurante, o cliente tem a oportunidade de observar o preparo das carnes na churasqueira, antes de irem parar (por apenas alguns minutos) em seus pratos.
Bateu aquela fome? O Cardume de Porto Alegre está mais do que convidado para desfrutar de todas essas delícias! O Sulina Grill espera por todos de segunda a sábado, das 11h30 às 15h e das 19h à 0h; domingo das 11h30 às 17h.



Sobre a carnificina, não vou me manifestar porque com certeza vou ofender umas bolotas. Mas sobre o Peixe Urbano, nunca mais entro nesse site, e nem o recomendo. É um site canibal, porque eles escrevem no texto institucional: "serviço super bacana que o Peixe Urbano pescou". E vou considerar uma fonte de vírus todo link que indicar "o melhor da sua cidade", porque a cidade onde eu moro definitivamente não presta pra nada. Tô dizendo, é aqui a origem da extinção da raça humana. Primeiro, comem bois, peixes, aves, etc. Logo, comerão outros seres humanos. Quem quer apostar?

Da barriga pra fora

[#103] Pois é, agora pensei no outro lado da história. Se pra uma grávida é um pesadelo morar na Capital do Inferno, imagina nascer aqui. A criança mal nasce, já tem que andar entupida de panos e cobertores. Por isso usar coeiros faz muito sentido na Capital do Inferno. Só que deve ser traumatizante para um recém-nascido saber que ele se mexia mais dentro da barriga da mãe do que fora dela. Uma das características mais naturais do ser humano, o movimento, é banido logo após o parto. Depois vira uma criança tímida e ninguém sabe por quê.

Como se não bastasse ter que viver enfiado em cobertores, o bebê tem que usar fraldas. Mais do que isso, tem que trocar fraldas. Não é só ir no banheiro, cagar e dar a descarga. Tem todo um ritual que vai desde dispor de uma mesa, uma cama ou uma tábua até esfregar um lenço umedecido (gelaaaaado!) no rabo do coitadinho. Quando isso não é suficiente pra evitar assaduras e choradeiras, tem que usar um Hipoglós (gelaaaaaado!). Pobre da criança.

Aí o bebê chora, quer mamar. Lá vai a mãe colocar a teta pra fora, mas até encontrar o sutiã, depois de levantar umas quatro ou cinco camadas de roupa, o bebê já está desidratado e rouco de tanto chorar. A mãe pensa "tomara que ele cresça logo e passe pra mamadeira". Sim, logo ele vai tomar mamadeira. Mas é bom lembrar que o leite vai esfriar num segundo. Talvez seja melhor inventar uma mamadeira térmica.

Se passa um ano, e no meio dessa passagem nós temos o verão (sic) da Capital do Inferno. Na verdade, são uns poucos dias em que o sol aparece para dizer que existe, cuspir um fodam-se na nossa cara e sumir no Equador. Depois disso, o infeliz bebê geminiano comemora seu 1º aninho. Mais um pesadelo... Ele devia aprender a se sustentar sobre duas pernas e parar de engatinhar. Mas, com tantas camadas de roupa e mais uma fralda cagada, ele não tem forças para levantar do chão, quanto mais de manter o equilíbrio.

Acho que quando a espécie humana quiser se extinguir, basta que as pessoas vivam uns anos aqui. Elas morrerão, pois não se procriarão, não terão convívio social, não farão nada além de se encolher num canto e se cobrir de roupas. Não existirá cultura. A sobrevivência é impossível. Ao pensar nas crianças que aqui são paridas, eu não sei o que sentir. Diante de tanta desgraça, não sei se tenho pena, ódio, medo, orgulho. Não sei, não sei!

"Eu não sei o que quero, mas sei o que não quero" - então já tenho meio caminho andado.

Ode a Manuel Bandeira

[#102] O post de ontem me deu uma idéia melhor. Quem sabe, ter um filho pode ser um bom motivo para ir embora! Acho que vou começar a pensar mais seriamente nesta possibilidade. Tem pessoas que enfiam na cabeça que "meu filho tem que nascer nos Estados Unidos", ou na União Européia, ou em Israel, e lá vão os pais morar por um ano num país que nunca conheceram, só para dizer que têm um filho estrangeiro. Ou para que o filho tenha mordomias como green card e dupla-nacionalidade ou, pelo menos, para que ele possa dizer que nasceu na Terra Santa. Tá aí! Vou ter um filho e...

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

De barriga

[#101] Imagine o pesadelo de ter um filho na metade do ano, na Capital do Inferno. Imagine a a mãe, que já está do tamanho de um botijão e ainda tem que encontrar casacos, calças e blusas que não apertem o corpo. Tem que vestir não sei quantas camadas de roupa e vai parecer grávida de trigêmeos. Fora isso, são roupas que, se ela não se tornar obesa depois do parto, ela nunca mais vai usar. Tanta grana para comprar roupas tamanho GG para usar uma vez na vida. Acho que estar no Inferno é um bom motivo para não ter filhos.

Festejando

[#100] Para comemorar minha centésima postagem neste blog, que tal comemorar com uma festa? Ops, desculpe, estou sonhando alto. Festa, na Capital do Inferno? Não existe. Tenho que esperar até quinta-feira. Ah, mas são uns R$ 25 pra entrar. PUTZ! Com essa grana eu compro dois fardinhos de Heineken e chamo pelo menos dois amigos para beber junto. Desculpa, mas eu já estou abaixo da linha de pobreza e não posso comemorar, pelo menos não neste cu de Judas. Ah, se eu pudesse pelo menos dar uma volta na praia, no início da manhã, curtindo os prazeres gratuitos da natureza (que JAMAIS serão superados pelo "prazer" de ir a uma festinha cheia de fakes)...

Pra quem não tem colírio

[#99] Às vésperas da minha centésima postagem neste blog, é de conhecimento geral que não existe sol nesta Capital do Inferno. Assim, o que se pensa ao ver uma pessoa de óculos escuros? É possível que esteja se protegendo do mormaço, que - dizem - "queima" até mais do que o próprio sol. Mas é bem mais possível que a pessoa esteja curtindo uma vibe louca, depois de ter se chapado a noite inteira numa festa e já estar com THC saindo pelas orelhas.

Bela vista

[#98] É tão bom acordar, abrir a janela e ser saudado por uma bela vista logo no início do dia! Esse argumento é muito usado para vender apartamento. Até pode dar certo, quando colocam a foto de uma praia, ou de uma varanda com rede com vista para a lagoa. Na Capital do Inferno, o máximo que se consegue é a vista de janelas, paredes e telhados. Deve ser tão bom acordar, abrir a janela e ser saudado por um telhado ou por uma parede de concreto!

O atraso matutino

[#97] Pois é, eu estava refletindo aqui com os meus botões... Parece que todo mundo que mora na Capital do Inferno sofre com essa dificuldade de acordar. Tem gente que diz que "é tão bom ficar debaixo do edredom". Claro que deve ser, para quem não faz nada o dia inteiro. De qualquer forma, com o frio, a tendência é dormir muito mais do que oito horas por dia, e quando o despertador toca, é um martírio sair da cama. Já estamos atrasados para os compromissos diários mesmo antes de tomar o café da manhã, então imagina fazer ainda outras atividades matutinas, como o tal do surya namaskar que eu aprendi esses dias?

Em busca do nirvana

[#96] Como já não estou conseguindo dar conta da minha própria vida, resolvi apelar para terapias e atividades em que eu dependo de outra pessoa. Fui então fazer yoga, e logo na primeira aula de ashtanga, aprendemos a Saudação ao Sol. Saí de lá frustrada, sabendo fazer a saudação direitinho, mas com a consciência de que não vou ter coragem de efetuá-la todos os dias de manhã, logo ao acordar. Isso porque nesta merda de cidade não faz sol. A gente não tem o que saudar, não tem sequer um presente da natureza para alegrar nosso dia. Agora vai pesquisar se algum tipo de yoga tem uma "saudação à chuva". A resposta é óbvia.

Uma palhinha do surya namaskar:

Vento e chuva

[#95] Quando o clima resolve se revoltar, o negócio é encarar essa entidade maligna e vestir a roupa de astronauta. Mas hoje a chuva apareceu de surpresa e eu perdi a conta de quantas pessoas tentavam inutilmente usar capuz para se proteger dos pingos. A ventania era tão forte que voavam capuzes, mantas, casacos. Quando a ventania se une à chuva, não dá para sair por aí querendo chegar ileso a algum lugar. Nem adiantaria carregar um guarda-chuva, pois ele viraria ao avesso com tanto vento. Caralho, eu preciso ir embora daqui.

Ciclo vicioso da doença

[#94] Estou doente, portanto não pratico esportes, portanto não me alimento direito, portanto estou doente.

Emplastro

[#93] Percebi que nunca visitei tantos médicos, na minha vida inteira, quanto visitei no mês passado. Parece até que um problema foi desencadeando outro (na verdade, um foi desmascarando outro) e acabei me sentindo uma pessoa velha e incapaz de se virar sozinha (até porque os médicos pediram retorno, seja em um mês, seja em meio ano). Parece que nunca mais vou me livrar dessa raça de gente que examina gente.

Mas o que me apavorou foi que comecei a usar um monte de remédios (quando nada mais funciona, nós começamos a apelar para a indústria farmacêutica e viramos dependentes químicos de drogas lícitas). É talco pra frieira, pomada pra cicatrização, spray pra rinite, bala pra dor de garganta, gel para limpeza, aspirina pra dor de cabeça, vitamina C pra gripe, cremes hidratantes pra pele, antibactericidas pra boca, colírios, etc. etc. etc. É um monte de coisa, e como se não bastassem os gastos com tantos produtos químicos, ainda tem a questão do tempo. Cada coisa tem um horário, um remédio tem que ser ingerido com a comida, outro depois do banho, outro antes de dormir, um na hora de acordar, outro em jejum de 6 horas, alguns de 8 em 8 horas, muitos por 7 ou 30 dias. Acho que nem um coquetel para aidéticos é tão complexo como o meu cardápio de medicamentos. Ninguém tem saco para ficar se controlando tanto assim. Talvez nós tenhamos que voltar aos velhos tempos, quando um emplastro qualquer, criado pelo boticário da província, curava desde dor de dente até histeria. Meu emplastro eu já sei qual é: uma viagem de ida sem volta para qualquer lugar que não tenha coisa alguma em comum com este Inferno.

O mais intrigante é que, possivelmente, a origem de tantos males esteja não em mim e no meu corpo que está aparentemente sem imunidade alguma, mas neste maldito lugar onde moro, neste inferno horroroso que destrói a saúde de qualquer ser vivente. Onde é que isso vai parar? Será que eu vou sobreviver até que me receitem um tarja-preta?

Resistência vegetariana

[#92] Como ser vegetariano na capital do churrasco? Como sobreviver no meio de gente que coloca charque no café da manhã? Como almoçar na mesma mesa de pessoas que fritam bacon, lingüiça e pele de galinha para colocar dentro do pão? Tenho asco dessas pessoas que se gabam de carnear um boi e de depenar um frango. Eu até entendo: como aqui não faz sol, não adianta querer plantar alface, tomate, batata. Só cresce capim, e, com sorte, algum cogumelo em cima da bosta. O ser humano não come capim, mas infelizmente come a vaca, que come o capim - como se a morte de um animal fosse imprescindível à vida humana. Se este lugar é um paraíso para os carnívoros, só pode ser o inferno dos vegetarianos. É impossível ser saudável por aqui.

Elogio aos hipocondríacos

[#91] Sabe o que eu li hoje na embalagem de um medicamento? "Conservar em temperatura ambiente (de 15ºC a 30ºC)". QUE ABSURDO. É um sonho, uma fantasia, um delírio imaginar que a temperatura ambiente tem pelo menos 15ºC. Aqui na Capital do Inferno, esse remédio teria que ser conservado dentro do fogão, ou em frente a uma lareira. "Temperatura ambiente", até parece piada.

Caminhando e chorando e seguindo em vão

[#90] Um dia desses, ou melhor, uma noite, surtei enquanto caminhava por aí. Eu tinha duas horas livres entre um compromisso e outro. Não fazia sentido ir para casa e voltar, pois seria o mesmo que descer do ônibus, dar uma pirueta, atravessar a rua e pegar o mesmo ônibus no sentido contrário (sim, isso demora duas horas). Então, fiquei vagando pelas ruas, morrendo de medo, com o cu na mão porque a noite no Inferno não é nada segura. Eu estava perto de uma praça, mas a praça é tão escura à noite que não ouso nem dar uma volta ao seu redor (até porque já fui assaltada por ali). Caminhando pelas ruelas, me deprimindo a cada passo e percebendo que esta maldita cidade não tem NADA para acolher uma pessoa, comecei a chorar. Também a chuva apareceu, como se eu merecesse um castigo por existir. Aí me dei conta de que é foda não ter um banco para sentar, não ter uma parada de ônibus que seja coberta para escapar da chuva, não ter um espaço decente que protegesse do frio. Nem um banheiro público! Pensei que, apesar de tudo, mesmo naquela situação moribunda, eu não me igualava a um mendigo. Os mendigos passam por essa falta de acolhimento urbana o tempo todo, e eu mal agüentei ficar duas horas sozinha, sem ter o que fazer e debaixo de chuva. Ou você paga para estar dentro de algum lugar, ou você fica em casa. Mas quando não se tem dinheiro para gastar (ou, simplesmente, não se quer gastar), e quando não faz sentido ir para casa porque se mora muito longe, a solução é justamente essa. Morar no Inferno custa caro, essa é a verdade. Então fiquei lá, dando voltas sem rumo, chorando, afundando no pesadelo de estar sozinha e sem me sentir à vontade em lugar algum. É o Inferno, é o Inferno.

Bailei na curva

[#89] Por aqui, é comum que uma rua mude de nome ao fazer uma curva ou ao cruzar outra rua. Este inferno deveria implodir!

A pé pelo inferno

[#88] Quero ir a pé até Tal Lugar. Digamos que seja a 10 km de distância daqui. Não é impossível caminhar até lá sem morrer pelo caminho. Olho um mapa, vejo onde fica, anoto o nome das ruas num papel e vou. Isso tudo funcionaria se eu não estivesse na Capital do Inferno. Aqui, as ruas até têm nome, mas isso não adianta muito quando estamos a pé por aí, querendo chegar a algum lugar. Não existem placas com os nomes das ruas. E ninguém em sã consciência anota o nome da rua e as suas referências (por exemplo, "segunda paralela à Carlos Gomes", ou "primeira à direita, indo da Protásio à Ipiranga pela Ramiro").

Pepsi: euamoinferno.com.br

[#87] Esses tempos, a Pepsi anunciou ter adotado a Capital do Inferno. A Pepsi começou a investir na melhora de pontos de lazer (sic) desta cidade desprezível, reformando a orla da maior fossa a céu aberto do mundo, o lago Guaíba. Reformou também um palco curiosamente chamado de "anfiteatro", esquecido no meio de um gramado que alaga todo ano. A Pepsi, agora, realiza eventos de lazer para tentar justificar a estampa da marca na moldura de tantos objetos tombados pelo patrimônio histórico. Amanhã, que é dia dos pais, a Pepsi vai oferecer uma atividade chamada "ciclismo em família", na maior praça da cidade. E vai chover. Só uns retardados, mesmo, para pedalar naquela praça num dia de alagamentos. Agora me diz, como é que uma empresa tão grande como a Pepsi é capaz de investir tanta grana na Capital do Inferno? E ainda chamar esse projeto de "Eu Amo Inferno", colocando coraçõezinhos no lugar da palavra "amo"? Isso não pode ser real. É estúpido. Eles, sim, perderam a cabeça ao achar que, injetando alguns milhões na prefeitura, vão mudar alguma coisa. Esqueçam. O clima não muda. As pessoas não mudam. O inferno vai ser inferno para sempre.

A lógica da natureza

[#86] Como explicar a um cachorro que ele não pode passear na rua porque está chovendo? Como explicar que aquela roupa que ele odeia usar é uma tentativa humana de protegê-lo do frio? Como esperar que ele coma direito, se a comidinha congela em poucos minutos? Como oferecer água, se a água também congela? Nenhum animal em sã consciência viveria neste fim de mundo. Nenhum. Isso porque os animais que consideramos "irracionais" são guiados puramente pelos seus instintos. Eles são mais próximos da natureza do que nós, infelizes humanos. Pela lógica da natureza, eu deveria ir embora. Pela lógica humana, que nunca fez sentido, eu deveria me agasalhar, acender a lareira, tomar banho quente e usar manteiga de cacau nos lábios. Pela lógica humana, tudo à minha volta é artificializado. Como agir naturalmente num mundo 100% construído, fabricado, pensado? Já sei. Eu só posso ser um robô, um ser cibernético pré-programado. Eu não sou humano, se meu mundo é artificial. Prefiro não ser humano, nessa vida desumana.

Cenário de guerra

[#85] Numa guerra, os homens jovens são mais úteis para lutar porque são mais fortes e resistentes, comparando com idosos, mulheres e crianças. Aposto como aqui, qualquer homem considerado saudável (ou seja, qualquer morador da zona equatorial) morreria com a primeira gripe que aparecesse. O que dizer, então, dos idosos, das mulheres e das crianças? O que fazer para que os animais não sintam frio ao caminhar nas ruas? Lamentavelmente, eu moro num cenário de guerra. Se não estamos todos prestes a morrer de frio, logo mataremos uns aos outros devido a um surto epidêmico de esquizofrenia. Capital do Inferno, um berço de sociopatas enrustidos.

É de cortar os pulsos

[#84] A gente sai de manhã cedo, morrendo de frio, rumo ao trabalho ou à faculdade. Veste um par de luvas. Toca o celular. Troca a música no Ipod. O cadarço desamarra. O gorro entorta. Dá fome e você compra um salgado numa padaria. Cai uma moeda no chão. Mãos para tudo. Mãos sem luvas. É impossível usar o polegar quando ele e todos os demais dedos estão cobertos por um pano fofo. O que você faz? Fica colocando e tirando as luvas toda hora? Não. A solução mais simples é andar sem luvas, e morrer de frio nas mãos nos intervalos entre uma ação e outra. Francamente, é de cortar os pulsos.

Pano de fundo

[#83] Agora, sim, uma foto bem mais característica. O local é o centro da cidade e a fotógrafa JURA que não editou a foto pra deixá-la mais cinzenta. Eu acordo no meio desse inferno todos os dias, e com o céu dessa cor, eu nunca sei se carrego ou não um guarda-chuva. Assim como pode chover, pode não chover. Quase sempre ocorrem as duas coisas seguidamente, de forma que o guarda-chuva abre e fecha várias vezes ao dia, molha todos os ambientes fechados, pesa quando tem que ser carregado pelo cotovelo e acaba quebrando porque, afinal, é um acessório vagabundo como qualquer coisa fabricada para os sobreviventes da Capital do Inferno.


Créditos da foto: Gabriela Antonioli

Visões de mundo

[#82] Pra quem ainda não entendeu o que é a cidade onde moro, hoje vou postar uma foto dela num dos seus dias mais lindos. Convenhamos que não é a melhor visão para se ter durante o trabalho.


Isso é pra que os que não moram aqui saibam que é foda não poder usar um All Star furado porque ele vai encharcar na primeira pedra frouxa da calçada.

O quadro clínico piora

[#81] Urticária não é nada. Foda mesmo é a crioglobulinemia, uma doença sangüínea que aparece com o frio. A pessoa que tem esse troço (pode ser eu!), quando exposta a baixas temperaturas, produz mais proteínas do que o necessário: surgem estranhas interações entre moléculas dentro do sangue, e como os vasos sangüíneos encolhem com o frio, eles ficam entupidos. Outros tipos de crioglobulinemia se devem não ao frio, mas ao depósito de imunocomplexos nos vasos sangüíneos, já que o cidadão produz anticorpos em demasia. Independente da causa (e a que me interessa, aqui, é o frio mesmo), essa doença origina lesões de cor púrpura na pele da pessoa, como se ela tivesse passado por uma sessão de espancamento e tortura. Isso faz todo sentido, pois o sangue circula menos - principalmente nas extremidades do corpo. Fico pensando no que acontece com os ossos da criatura, pois os ossos são microporosos, regados de sangue. Talvez esse problema da crioglobulinemia cause reumatismo. Além da púrpura, ocorrem também outras "ites" que eu ainda não investiguei etimologicamente (sinovite, serosite, etc.), e confesso que depois de descobrir que posso apodrecer por causa do frio, não acho que seja uma boa idéia saber o que é sinovite. Deve ter algo a ver com articulações.

Enfim, fiquei triste por saber que meus pesadelos podem virar realidade, mas fiquei feliz porque este é um motivo muito bom pra eu me mandar daqui o quanto antes. Para quem quiser saber mais sobre crioglobulinas, recomendo que vá assistir House. Ou que entre neste site, em português: Crioglobulinemia