Quadro clínico

[#80] Só de sair na rua, é possível ter uma urticária. Isso me aterroriza. Eu achava que estava enlouquecendo, até descobrir que uma "alergia ao frio", por assim dizer, é possível. Basta digitar no Eco4Planet: "urticária por frio" - para constatar que eu não perdi a cabeça. Isso existe e, infelizmente, é comum.

Ônibus - de novo

[#79] O problema dos ônibus nem é dar voltas demais. É que existem muitas linhas dando voltas demais pelos mesmos lugares. Milhões de ônibus fazem o mesmo trajeto para ir de um ponto a outro, mas quando o transeunte quer ir daquele ponto até um lugar diferente, ele não consegue. Até consegue, mas vai fazer uma turnê pela cidade até chegar lá.

Ônibus

[#78] Antes de desistir de tudo, talvez valha a pena pegar um ônibus. Não se assuste se ele começar a andar na direção contrária à que você quer seguir. Primeiro, porque ele pode estar simplesmente desviando de ruas curvas e contramão. Segundo, simplesmente porque é um ônibus na Capital do Inferno. Ele surgiu para atrasar a vida das pessoas, dando voltas e voltas inúteis até chegar a um local onde todos os passageiros descem como que por inércia.

Para quem anda sobre duas rodas

[#77] E os cadeirantes, como é que ficam? Resposta: não ficam.

Mas eu vou de carro!

[#76] Supondo que você não é um pobre chinelão, como eu, e tem um carro para trafegar pelo Inferno. Também tenho uma dica para os motoristas e pilotos: não dirijam na Capital do Inferno. Não interessa onde você quer chegar, encontrará uns mil e quinhentos retornos pelo caminho. É incrível como as ruas são, todas, contramão. Mas estamos no Inferno, tudo é possível.

Dica para quem vai a pé

[#75] Não caminhe por lugares que você desconhece. Nem que seja só uma espiada no mapa antes de sair de casa, já é de grande ajuda. Isso porque as ruas que parecem estar lá para cortar caminho na verdade são enormes curvas para a esquerda, ou para a direita, e só vão te levar mais longe do que você imaginava. Ou, pior, são ruas sem saída. Aí, pronto, não tem outra saída senão voltar.

Cultura de menos

[#74] O maior teatro da cidade, o mais antigo (e muitas vezes o mais caro), não é nem metade do 2º maior teatro de Fortaleza. Eu não sei dizer se o Theatro José de Alencar é maior do que o Cine São Luiz (Centro Cultural Sesc), mas ambos são maiores do que o Theatro São Pedro. Depois vêm os francófilos me dizer que as concentrações culturais do Brasil são São Paulo, Rio de Janeiro e, menos, a Capital do Inferno. "Maior complexo cultural da América Latina". Duvido. Os tristes moradores desta capital não sabem o mundo que existe dos burgos para fora.

Sinal vermelho para o pescoço do pedestre

[#73] Outra coisa que me incomoda nesta cidade são os semáforos. Um carro está num cruzamento e tem que cuidar um semáforo que está quase sobre sua cabeça, quando poderia muito bem estar do outro lado da rua que ele vai cruzar. Isso seria muito mais útil, também, para os pedestres. Alguém disse que aqui os pedestres têm um semáforo só pra si, aquele que mostra ou um homem verde ou uma mão vermelha. Acontece que nem todos os semáforos têm essa adaptação para pedestres. Pelo contrário, quando isso existe num cruzamento, é válido somente para uma das ruas. Não é fantástico, isso? Aí fica lá o pedestre quebrando o pescoço, olhando mais para cima do que para o lado, enquanto atravessa a rua. No meio do percurso, o semáforo fica verde e o infeliz tem que correr até a calçada. Sabe, é fogo morar no inferno. Quem anda de carro se fode. Quem anda de bicicleta se fode. Quem anda de skate se fode. Quem anda de cadeira de rodas se fode. Quem anda de bengala se fode. Quem anda a pé se fode. Por isso as pessoas evitam andar. Recomendo que os semáforos sejam posicionados, como em outras cidades, do outro lado da rua que atravessa o cruzamento. Além de tudo, evita torcicolos.

Tipos de morte: homicídio

[#72] Gente, o frio mata - ou faz matar. A prova que trago é a notícia a seguir:


Frio intenso pode ter provocado a morte de 2 pessoas no RS

[...] Em Passo Fundo, um morador de rua foi encontrado morto com sinais de hipotermia. Em Santa Maria houve outra morte, mas ainda não há confirmação se foi provocada pelas baixas temperaturas. [...]

Fonte: Terra Notícias

Tipos de morte: suicídio

[#71] Por aqui, a cada 100.000 pessoas, 12 se matam. Esta cidade que tenho medo de chamar de "minha" é a capital do suicídio no Brasil. Não é à toa.

Lady Gaga é daqui

[#70] O vídeo diz tudo. Que vergonha dessa mal-amada.

Me espera no portão

[#69] Estava eu na recepção de um lugar, conversando com a recepcionista e seu supervisor. Chovia pra caralho. Lá tinha daqueles portões que abrem e fecham através de um botão no interfone. Alguém saiu e o chefe disse, tem que ir lá conferir se o portão fechou mesmo, porque ele bate mas nem sempre ele tranca. Também, com essa chuva! Lá foi a guria, tomar um banho. Voltou dizendo que o portão, realmente, não estava trancado. O chefe foi embora e apareceu outra pessoa: pois é, esses dias a fulana saiu sem conferir se o portão tinha batido e no outro dia, pronto. Levaram o note. Pelo menos os ladrões desta capital infernal não têm pavor de chuva. Deus me livre no dia em que eles me descobrirem.

Exemplos de fora

[#68] Obviamente, a Capital do Inferno é o pior lugar do mundo. Tantos exemplos de cidadania são vistos por aí, e minha cidade não se inspira nos outros. Nem sequer tenta plagiar boas idéias. Estive uma vez em Fortaleza, uma belíssima capital nordestina, e lá andei muito de ônibus. Em algumas paradas, havia um display mostrando qual era o próximo ônibus que pararia ali, e em quanto tempo ele chegaria. Dentro do ônibus, outro display mostrava em que parada a pessoa estava, qual era anterior, qual seria a próxima e em quanto tempo atingiria a próxima parada. Fiz o teste, desconfiando de que nada funcionava, mas o ônibus adivinhou quanto tempo eu levaria até descer. Depois me falaram que isso existe em Londres, e também funciona. Depois dizem que o nordeste brasileiro é atrasado (VÁ SE FODER, O RETARDADO QUE DIZ UMA MERDA DESSAS). Aqui, inventaram de colocar TV nos ônibus, e tudo o que vejo é o horóscopo, algumas receitas básicas, regras de português (ok, isso é bom), ofertas do supermercado e alguns clipes de música. Tudo coisa que dá pra ver na internet, quando eu chego em casa. Esta maldita e bairrista cidade não tem nem cara-de-pau de admitir que o progresso ocorre lá fora, enquanto aqui dentro nós vivemos pagando pelos pecados da humanidade.

Um motivo escatológico

[#67] Desde que Freud existe, as pessoas têm vergonha de falar sobre merda, pois terão sua vida sexual descoberta logo na primeira vírgula. Mas me dei conta de que Freud estava certo num ponto: o momento de cagar é importante, entre tantos momentos desprezíveis no dia de uma pessoa. Principalmente aqui na Capital do Inferno. Não é comum haver aquecedor nos banheiros, e no entanto é necessário ficar com a bunda de fora por alguns minutos. São minutos em que o cu, as nádegas e as coxas congelam e o cérebro pensa que está recebendo sinais de falência múltipla dos órgãos. Francamente, cagar no frio é mais humilhante do que fazer cocô num penico, num quarto de hospital.

Winter blues

[#66] Tentando descobrir se eu sou mesmo doente, digitei "depressão de inverno" (e todas as suas variações, em português e em inglês - que por sinal, pode ser tão simpática: "winter blues") no Eco4Planet e encontrei alguns sites interessantes. O engraçado é que a maioria trazia o conteúdo "oposto", falando de como o sol faz bem, de como as cores melhoram nosso humor, como as pessoas ficam mais dispostas e saudáveis no verão. O mais rápido corredor de curtas distâncias é jamaicano, se nutre de sol e calor todos os dias. Eu, na Capital do Inferno, só choro e engordo, viro sedentária e tento me animar dividindo meu pesar com os leitores imaginários deste blog revoltoso. Mas hoje, meu motivo é justamente este: quanta coisa se produz sobre os benefícios do verão, e o que se diz dos benefícios do inverno?

Margie Simpson and Me

[#65] Teve um episódio dos Simpsons em que a Margie não queria sair de casa. Estava com uma agorafobia crônica e foi morar no porão. Sabe, às vezes eu tenho vontade de me trancar em casa, para não contaminar as outras pessoas com o meu mau humor. Ela via coisas. Eu vejo neblina, ouço o vento zunindo, me sinto enjoada quando há mormaço (ou seja, todos os dias). E só de olhar pela janela e ver que não tem sol, eu viro para o lado e tento dormir o máximo possível. Vou precisar de conselhos da Margie.

Claustrofobia

[#64] Quanto mais eu me visto, mais me sinto espremida por roupas que parecem inúteis (o frio não passa). Além de não conseguir me mexer, não consigo respirar. Parece claustrofobia, mas acho que é pior. Dá uma mistura de pânico, agonia e ansiedade, como se todas essas sensações fossem uma só tortura.

Sova e encolhe

[#63] É frustrante descobrir que o fermento biológico perde suas propriedades aqui na Capital do Inferno. Ontem fiz pão árabe, e a massa sovada, crua, deveria crescer em meia hora de repouso. Que nada, parece até que encolheu. Depois fiz os pães e, quando já estavam no forno, ficaram côncavos. Com esse inverno, cozinhar não rende. Vou passar fome daqui pra frente.

Atrito congelante

[#62] Um dos sintomas de que tudo pode ficar pior, quando já está ruim, é a dormência nos pés. Cada dedo do pé é como um cubo de gelo. Parece que um gruda no outro quando começamos a esfregá-los, então é melhor manter o pé imóvel. Só que, mantendo-o imóvel, ele parece congelar mais ainda. Estou me aborrecendo. Tudo é tão tautológico nesta maldita capital. Meus pés ficaram dormindo, e eu, chorando - como se as coisas fossem melhorar num piscar de olhos.

Nenhum olho

[#61] Pois é, na falta de um pano com o que secar os óculos molhados pela chuva, o míope espera que as lentes sequem naturalmente. Enquanto isso, ele se esforça para ler os letreiros dos ônibus, as placas de trânsito, as projeções em Power Point, as legendas dos filmes e, também, para reconhecer as pessoas. Passam-se umas seis, sete horas e ele volta a usar os óculos. Surpresa! Manchas de pingos, bolas foscas - brancas, roxas e verdes - por todos os lados. Sinceramente, a vontade que dá é de arrancar os olhos num momento desses.

Quatro olhos

[#60] Miopia. Parece que esse problema é puramente físico, pessoal, mas infelizmente ele está relacionado com o conteúdo deste blog. Ser míope significa dizer que preciso usar lentes ou óculos. Experimente ser míope na Capital do Inferno! Você vai ver maravilhas quando as gotas de chuva se acumularem nas lentes dos óculos. Vai achar que está pirando quando elas começarem a embaçar. Vai preferir ficar cego a ter que agüentar isso tudo quando, justamente, não tem com o quê secar os óculos.

Papel e arte, combinação perigosa

[#59] Depois de refletir sobre as desvantagens de ter um papel sempre úmido (situação que piora quando se usa papel "ecológico" - aquele marronzinho), comecei a pensar nas situações em que é fundamental que o papel esteja úmido. Lembrei do papel machê, em que o papel fica de molho por um tempo. Mas logo apaguei isso dos meus pensamentos: a moral do papel machê é que ele tem que permanecer úmido enquanto está sendo moldado, mas depois ele tem que secar e ficar bem duro. Uma máscara de papel machê nunca ficará pronta em dez dias (lembra que, depois, tem a fase da tinta - que também é prejudicada pela umidade). É, lamento, não dá mesmo para viver de arte. Pior ainda, a arte por aqui não serve nem para lazer, porque a pessoa que resolve se entreter com isso acaba perdendo a paciência. Vou cortar meus pulsos e já volto.

Não viver de arte

[#58] Já que o infeliz (sobre)vivente da Capital do Inferno não consegue viver de arte de jeito maneira, ele vai fazer o tipo de serviço que todo e qualquer pobre-diabo faz: começa a trabalhar num escritório. Todos sabem que isso não é muito agradável, em parte pelas burocracias, em parte porque a pessoa não se sente útil. Trabalhar com uma papelada, telefones e computadores (ou nem isso: uma vez, trabalhei num escritório que só tinha UM computador, pois os chefes tinham medo de que os usuários ficassem no MSN e no Orkut o dia inteiro. Pedi demissão no segundo dia.) é um porre, é cansativo, é brega, e falta pouco para ser kitsch também. Mas quem mora na Capital do Inferno é guerreiro. O cara precisa trabalhar e, não podendo fazer o que quer, faz o que pode. Passa o dia se estressando com firulas laborais, e uma delas, que pode parecer ridícula, é o papel trancando e amassando dentro da impressora. Dá uma raiva quando se está com pressa e dá um pau na impressora! Eu descobri que uma das causas é a umidade do papel. Papel úmido sempre tranca. Na Capital do Inferno, ele já nasce úmido. É foda. Quem não tem uma estufa não tem o que fazer, a não ser ficar diante da impressora colocando folha por folha, cruzando os dedos para que o papel não trave no meio do caminho e para que a tinta não borre. É possível não se estressar?

Viver de arte

[#57] Ontem, falei sobre artes circenses. Lembrei que não é só o circo que é prejudicado pelas condições ambientais da Capital do Inferno. Outras artes também se tornam insustentáveis, como a pintura. Para quem não sabe, um quadro pode demorar dias, meses e, até, anos para ficar pronto. Os elementos e as cores vão sendo postos aos poucos. Normalmente, a tinta tem que secar para que se pinte uma nova camada ou para usar outra cor. Na Capital do Inferno, adivinha. A tinta não seca! É impressionante! O quadro fica lá, parado no meio do ateliê, por uma semana, e o pintor acha que está tudo ok. Quando ele toca na tela para ver se a tinta secou, fica com a ponta do dedo colorida. Não tem jeito. Parece até que o quadro ficou no sereno o tempo inteiro. A tinta não seca nunca, e isso termina com a paciência de qualquer artista. Eu sei que viver de arte é difícil, mas viver de arte na Capital do Inferno é o fim da picada.

Nas ruas

[#56] Resolvi entrar para o circo. Quando eu não tiver mais nada, pelo menos vou saber fazer acrobacias e malabarismos. Tem uns moleques de rua que, para conseguir comida, equilibram laranjas nas esquinas. Só que, na Capital do Inferno, viver dessa arte não é difícil; é IMPOSSÍVEL na maior parte do ano. Ou tem vento, ou tem chuva, ou o cara passa um frio do cão. Sabe, dá vontade de desistir de tudo e ir embora, tentar a vida num lugar melhor, mais decente e que as próprias condições naturais, ambientais, respeitem as necessidades humanas. Se matar pra quê? Passar frio a troco de nada? Aprender malabarismos para não poder mostrar para os outros? Fuck this town.

Deu bolo

[#55] Fui fazer um bolo. Ele deveria crescer, mas não cresceu. Isso que coloquei fermento o suficiente para um bolo e meio. Depois, descobri que foi por causa do ar - frio - dentro do forno. Descobri que a minha saída é deixar o forno pré-aquecer por mais tempo. Ok, e os gastos com gás? Será que o prefeito me paga de volta?

Vento na cara

[#54] Aqui, não dá pra dormir à noite com a janela aberta, "para entrar um ventinho", para se refrescar e não acordar sufocado pelo próprio bafo. Qualquer vento é mortal. É pneumonia na certa. Sabe Brás Cubas? Ele morreu ao abrir a janela e respirar a brisa fresca da manhã... Às favas com a brisa fresca! Pegou uma pneumonia e morreu. Agora nós sabemos de onde o Machado de Assis tirou inspiração.

Pra italiano ver

[#53] Esses dias, chegou um italiano na cidade. Me pediu para mostrar os pontos turísticos. Acabei levando ele na Cidade Baixa, que pelo menos tem algum agito. Estou até agora matutando sobre a (in)existência de pontos turísticos na Capital do Inferno.

Mofo

[#52] Sabe, descobri que tudo o que não pega sol mofa. Tenho pendurado na parede um coco seco que eu trouxe do Ceará, no qual é talhado um macaco. Ele fica perto da janela todo dia, mas pelo visto ele não está muito feliz. Acho que resolveu se suicidar, já que estava acostumado a pegar sol e agora só pega umidade e vento. Então, o bichinho mofou. Que merda, acho que estou mofando também.

Será que chove?

[#51] Em qualquer lugar do Brasil, quando acontece algo raro, é comum dizer: "ih, vai chover". Na Capital do Inferno, se diz "ih, vai dar sol".

Exemplo: hoje a seleção do Brasil jogou contra a Holanda e saiu da Copa. Não deu outra: abriu o tempo por aqui, e surgiu um dia de verão no meio do inverno.

Chuva em duas rodas

[#50] Como comemoração ao meu 50º post neste blog, vou contar uma historinha. É a historinha do porquê eu não tenho carteira de motorista, ou melhor, de piloto de motocicleta.

Estava eu, bem feliz nas aulas da moto-escola, treinando para o grande teste. Como meu horário livre era meio-dia, eu ia todos os dias de bermuda e ficava até com as pernas bronzeadas, de tanto dar voltas naquele 8. Nos dois meses de aula, cheguei a sofrer duas quedas: uma por distração (não estava acostumada à manopla do freio) e outra porque um outro aluno se distraiu e tentou me atropelar.

No dia do teste, levantei cedo, pois seria logo no início da manhã. Preparada eu estava, ansiosa para tirar carteira. Mas a Capital do Inferno preparava uma emboscada que tornou aquele dia um dos mais importantes da minha vida - e um dos principais motivos por que DETESTO esta capital. Na pista de teste, botei o capacete, arrumei os espelhos, liguei a moto e deu tudo certo... Até trocar de marcha. Fui fazer uma curva e a moto morreu. Rodei na hora.

Fui ver se havia algo errado com a moto e, não, estava tudo perfeito. Exceto pelo fato de que a água da chuva havia diminuído o atrito entre as peças do câmbio e o pedal escapou, voltando para o neutro sem que eu tivesse feito COISA ALGUMA.

Voltei para casa chorando de raiva, numa clássica cena de cinema (ou de videoclipe) em que o protagonista, emburrado, veste um capuz e caminha sob a chuva, cabisbaixo, com as mãos nos bolsos, enquanto trovões tentam raptar sua atenção. Mentira. Eu não tinha capuz nem bolsos, somente uma pochete com minha carteira de identidade e as chaves de casa. Eu tinha ódio circulando pelas veias, e acho que naquele momento eu criei uma bolha em torno do meu corpo, pois sentia tudo menos a chuva que me encharcava.

Assim que pus os pés em casa, furioso, a chuva aumentou e se transformou num toró desgraçado. No mesmo dia, eu teria a última aula de carro, para fazer o teste no dia seguinte. Acabei indo à aula, mesmo com aquela chuvarada. O instrutor estava com medo de mim, e eu mesmo estava me sentindo uma ameaça no volante. Os vidros estavam embaçados e mesmo o vento não era feliz na sua tarefa de desviar os pingos da minha direção. No fim, eu não enxergava nada e minha vontade era de enfiar a porra do carro no meio de um poste, só para destruir aquela máquina mortífera, barulhenta e poluidora.

Então, graças à chuva, não tenho carteira de motorista. Joguei no lixo algumas centenas de reais que até hoje me fazem falta. A raiva é tamanha que não consigo nem chorar: só penso em ir embora, abandonar essa merda toda, apagar da memória todos os males que essa cidade já me causou. Hoje em dia eu até me orgulho de não ter carteira de motorista, pois prefiro alternativas menos agressivas à natureza. Só que isso não teria ocorrido se não fosse por uma mistura de culpa, raiva, negação, trauma, recalcamento - como aquelas crianças que, ao não poder ter alguma coisa, afirmam "eu nem queria, mesmo!". Talvez Freud explique melhor. Eu, aqui, me limito a explicar que a Capital do Inferno é o pior lugar para se viver, e eu sou prova suicida disso.