Fúria em duas rodas

[#49] Para quem não anda de carro, nem de moto, nem de ônibus, e também não tem tempo nem coragem de andar a pé por aí, sobra uma opção que, acima de tudo, é ecologicamente correta: a bicicleta. A pessoa faz um exercício e não polui. Tudo é lindo, perfeito e maravilhoso, até que o infeliz se dá conta de que está na Capital do Inferno. Esta cidade, por ser longe da felicidade humana (mar e sol), é repleta de sobes e desces. São lombas, morros, montanhas e ladeiras para todos os lados. Subir a Nilo Peçanha, a Lucas de Oliveira ou a Mostardeiro a pé é mais rápido do que de bicicleta, para pessoas normais (duras e sem tempo livre) como eu. E quando se chega lá em cima, ao invés de comemorar mentalmente, o ciclista tem vontade de chorar: na volta, vai ter que subir tudo de novo.

Graças às ladeiras desse fim de mundo, a pessoa se mata fazendo exercício, toma uma overdose de Gatorade, pega uma gripe (por causa do vento nas descidas), chega toda suada ao seu destino (que normalmente não tem uma ducha), tem que carregar uma mochila cheia de apetrechos extra (toalha, desodorante, sabonete e outra muda de roupa) e, no fim do dia, fica podre porque, SE A CIDADE FOSSE PLANA, ela não teria demorado três vezes mais para se deslocar de um ponto a outro e não teria desperdiçado energia.

Sem contar que não há ciclovias, então ao seguir o trânsito comum o ciclista tem que dar várias voltas para atravessar uma rua sem ir na contramão. Pelo mesmo motivo, ele não pode usar as calçadas - o que é certo, mas seria mais certo ainda se os motoristas respeitassem os ciclistas.

Não tem jeito, essa capital da desgraça. Tem que implodir essa porra e fazer tudo de novo.

Tomates verdes crus

[#48] Descobri, por curiosidade, como se faz tomates secos. É tão simples que se resume a "expor ao sol por período indeterminado, até secar". Básico, expor ao sol. E quando não tem sol, o que eu faço? E se só tem sol de 10 em 10 dias? Meus tomates apodrecem! E se no meio do caminho cai um toró? Aí, pronto, fodeu tudo. Mas quem sabe eu não aproveito a água da chuva para fazer um molho de tomate?

Agora lá vou eu gastar um horror de grana, comprando tomate seco industrializado, enlatado, conservado em óleo e ervas finas. Caro pra caralho.

Coisa de cinema

[#47] Por quê será que, no cinema, as cenas mais tristes têm referências ao inverno? Alguém morreu: chove. Alguém está com raiva: cai um trovão. Alguém está com saudades: venta. Alguém quer alguém: faz frio.

Depois de algumas aulas de cinema e muitas (bem mais proveitosas) de mitologia e artes, me dei conta de que os clichês são usados porque funcionam. Eles não funcionam porque um dia, depois de tanto serem usados, seus elementos se tornaram convencionais (ou, melhor, convencionados). Os clichês funcionam porque provêm dos lugares mais obscuros da mente humana, que Freud chamaria de inconsciente e Jung, de inconsciente coletivo. Talvez alguns russos diriam que é memória cultural. Talvez outros estudiosos chamem simplesmente de absoluto, em analogia com o próprio Deus. O que importa é que os clichês são apenas manifestações físicas de algo que não é um sentimento, não é um pensamento, não é uma criação humana, não é tangível mas existe.

É como se, assim como todas as pessoas têm propensão a sentir frio em determinadas condições climáticas, todas as pessoas têm propensão a associar o frio a situações ruins e tristes. Na minha teoria, isso é natural, e não cultural.

Por isso, esses recursos imagéticos associativos, usados no cinema, na televisão e nos meios digitais, funcionam com todo mundo (é como se houvesse uma identificação coletiva inconsciente). O problema é que, como se repetem demais, acabam sendo chamados de "clichês" e, depois de algum tempo, "perdem a graça", perdem o efeito de emocionar. As pessoas começam a achar que o negócio está muito batido e, de birra, só para contrariar todo mundo, dizem preferir os vídeos que rompem essa "tradição", em filmes que elas chamariam de vanguardistas (SÓ nesse sentido de não associar "chuva" com "lágrimas").

Em homenagem à imparcialidade, cito abaixo três cenas famosas que quebram a associação entre frio e infelicidade:
- O beijo na chuva, no filme do Homem-Aranha.
- O cara cantando na chuva, em "Cantando na chuva".
- O casal brincando de fazer anjos na neve, em "Brilho eterno de uma mente sem lembranças".

Em homenagem a mim mesma e à minha natureza (humana, infelizmente), continuo detestando qualquer manifestação do inverno, mesmo nos filmes. Grande coisa se Hollywood associa isso à negatividade, grande coisa se é batido e se é clichê. Foda-se tudo. Só de pensar nessas cenas do Homem-Aranha, do Brilho Eterno e do Cantando na chuva eu chego a sentir uma dor no coração. Certamente, os atores queriam matar o diretor ao filmar essas cenas.

Vivo ou morto

[#46] É uma questão de cores. Para quem nunca teve uma aula de artes, fica a dica:

Cores vivas = cores quentes
Cores mortas = cores frias

Nem preciso dizer o porquê... Eu bem que gostaria de me poupar de fazer esta observação, mas não vou: na Capital do Inferno não se vive, se morre. Sua aparência cinzenta diz tudo. Essa cidade não merece cidadãos.

Esquentando a Capital do Inferno

[#45] Dizem que na Europa as coisas são diferentes. Dizem que lá, assim como os alemães têm cerveja encanada (sim, você abre uma torneira e sai cerveja), existem sistemas de aquecimento de ar em toda parte. Dizem que lá as pessoas entram num restaurante e têm onde deixar seus casacos e guarda-chuvas (e ninguém vai roubar). Acho que essas inovações estão chegando à Capital do Inferno. Claro, aqui, o risco de ter suas roupas roubadas existe e é imenso.

[Eu mesma já tive luvas roubadas em uma loja de chocolates, dois dias depois de tê-las comprado. Tirei as luvas para provar uma trufa e as deixei no cestinho de compras e, depois de CINCO MINUTOS (que foi o tempo de ir até a esquina e voltar ao me dar conta de que estava sem luvas), a moça da loja disse que nunca vira tais luvas. Sei, moça, sei. Minha memória ainda sabe mais que tu e eu quero que os corvos te acorrentem num penhasco e belisquem teu fígado todos os dias da tua vida, sua porca miserável.]

Mas, voltando ao assunto, acho que essa capital está se europeizando: os interiores estão sendo aquecidos. Sala de aula, supermercado, shopping, restaurante, até ônibus é quente agora. Em qualquer lugar em que entramos, temos que tirar as camadas externas de roupa até ficarmos só de calça e camiseta (ai de quem esqueceu de vestir uma camiseta de manga curta debaixo das outras roupas!). Só que é um saco ter que ficar carregando aquele monte de roupa inútil pra lá e pra cá. Num supermercado, então, quando precisamos carregar um monte de sacolas na saída? E no ônibus, vamos deixar que a japona ocupe o banco ao lado enquanto as mãos seguram uma bolsa e um guarda-chuva? Sinceramente, eu não sei mais o que fazer. Acho, ainda, que a melhor opção é andar nu no meio do deserto e se cobrir com um sarape à noite.

Cosmonautas

[#44] Vista-se para um dia qualquer, aqui na Capital do Inferno, e olhe-se no espelho. Agora pegue uma foto do Iuri Gagárin e compare-se com ela. Dá até para entender por quê a astronomia se desenvolveu na Rússia. Eles já tinham toda a indumentária necessária, tinham roupas perfeitas que suportassem quaisquer temperaturas. Só faltava um carro que agüentasse a pressão do vácuo e que se locomovesse sem rodinhas. Até que um dia alguém inventou os foguetes, aí juntou A + B e lá se foi Iuri para o infinito. Aqui na Capital do Inferno, já temos os trajes quase perfeitos: japonas enormes (algumas até parecem edredons, têm até as costuras quadriculadas), calças sobre ceroulas, botas e galochas sobre calças, luvas de todas as cores, cachecóis que são tão grossos que podem vedar um capacete. É a cidade dos Cosmonautas sem rumo. Aqui moram aqueles que até querem chegar lá, até querem um dia conhecer a lua e outros planetas, querem viajar pela Via Láctea. Mas estamos falando de Brasil, e sabemos que jamais os cosmonautas da Capital do Inferno desenvolverão tecnologia suficiente para conhecer o espaço sideral. No máximo, pegar uma carona na barca do Gil Vicente e passear pelo limbo.

Ônibus fechado

[#43] Como se não bastasse ter 1/3 do espaço ocupado por japonas e ser repleto de ar quente, os ônibus mais novos da Capital do Inferno têm os inovadores vidros que não abrem! Talvez isso evite que algum moleque desafortunado nos roube os fones de ouvido ou o boné, pulando na janela pelo lado de fora, mas isso não só não evita como propicia a difusão da gripe. É impressão minha ou todo mundo fica com cara de doente dentro dos ônibus, nesta capital infernal?

Ônibus quente

[#42] O ônibus de hoje não estava tão lotado, como da outra vez. Mas alguém lá dentro inventou de ligar o ar-condicionado e o ônibus ficou parecendo um forno. Isso é ótimo, quando se está nu, prestes a entrar no banho às seis horas da manhã, em pleno inverno. Mas não no meio do dia, quando a pessoa já está toda encasacada, com gorro, luvas e botinas. Ela fica se sentindo "bem" enquanto espera o ônibus, uns vinte minutos parado na parada, e toma aquele choque térmico assim que passa na roleta. Assim, o ônibus vai direto ao Bairro dos Resfriados, um dos mais badalados da Capital do Inferno.

Ônibus lotado

[#41] "Acordo 7:00, tomo ônibus lotado. Entro 8:30, chego sempre atrasado. Eu sou boy..."

Eu não sou boy como o Kid Vinil, mas pego ônibus todos os dias, em horários tão convenientes que, geralmente, o ônibus está quase vazio. Hoje, ele parecia lotado. Ainda na parada, olhei aquele monte de rostos nas janelas, as pessoas de pé segurando seus livros, mãos nos corrimãos do teto. Entrei no ônibus e, mesmo tendo que me espremer entre bundas e sacolas para chegar até o fundão, notei que o ônibus não estava assim tão cheio de gente. Mas estava cheio de gente encasacada. Parecia três, não, quatro, cinco, mil vezes mais lotado do que se as pessoas estivessem usando roupas normais (ou seja, roupas "de verão" - pra quem não entendeu). Péssimo, péssimo.

Funk da puta com frio

[#40] Hoje, surgiu uma rima para funk:

Puta que pariu, que frio!

Em breve, em todas as rádios-pirata da periferia carioca! Ou, melhor, periferia da capital do inferno!

Copos de gelágua

[#39] Quando alguém fica gripado ou resfriado, as coisas que mais ouve são "toma muita água", "te agasalha", "fica de repouso". Eu me pergunto: como é que, tendo zilhões de tarefas para encerrar o semestre, é possível ficar de repouso? Me diz! Como é que, entrando e saindo de lugares com ar condicionado, é possível eu me agasalhar? Mas o pior de tudo é a água. A gente tenta tomar direto do bebedouro, tenta pegar no filtro, mas não adianta. Não existe água em temperatura ambiente neste inverno. Pelo menos, não existe água que seja tragável desse jeito. Na capital do inferno, existe GELÁGUA! "Essa é daqui", assim como a cerveja Polar. É como um xarope ao contrário, que ao invés de fazer a gente melhorar de uma gripe ou resfriado, só faz piorar.

5º estado físico da água

[#38] A água tem quatro estados físicos, a saber: líquido, sólido, gasoso e plasma. Na capital do inferno, como só existe o 5º estado físico da água, eu prefiro não chamar de água. Como não tem cheiro, nem cor e, muito menos, gosto, até se parece com água, mas é uma substância caracterizada principalmente pela temperatura. É algo entre o gelado e o hiper-gelado, que a gente toma achando que vai ficar bem, que não tem nada de mal, mas no fim ganha uma dor de garganta terrível. É qualquer coisa, menos água. Eu batizo, agora, de Gelágua.

Presente de grego

[#37] Depois de uma gripe mal curada, nada podia ser melhor: outra gripe!

África 2010

[#36] Geralmente, quando se pensa na África, se imagina o deserto do Saara durante o dia, com suas dunas douradas diante da energia do sol. Essa semana, a seleção brasileira de futebol jogou contra não sei quem, na África do Sul, e durante a partida a temperatura diminuiu pelo menos 2º C (e a sensação térmica, segundo noticiários, chegou a -5º C devido ao vento). Coitados dos jogadores! Já pensou que horror? Mas isso não é um horror para quem mora na capital do inferno. Estamos acostumados a abrir a boca, soltar uma gargalhada e bradar aos sete ventos: "Tu me racha a cara!". Agora eu sei que o inferno é muito maior do que eu imaginava. Este lugar onde vivo é apenas um pedacinho (talvez o mais concentrado) do que há de pior no mundo.

Dirigindo na chuva

[#35] Está frio e o motorista do carro mal consegue se mexer (ou porque não está agasalhado o suficiente e treme de frio, ou porque está agasalhado demais e suas roupas limitam seus movimentos). Já são dez horas da manhã, mas ainda parece noite porque está tudo escuro - então ele já não tem a melhor visão do trânsito. E está chovendo, está caindo um temporal desgraçado e ele não sabe se é pior ligar o pára-brisas ou deixar que apenas a chuva o distraia. Além de tudo, os vidros do carro estão embaçados e ele não pode ficar o tempo todo passando um paninho no vidro dianteiro (até porque ele seria multado se fosse visto com apenas uma das mãos no volante). Por algum motivo, o carro precisa frear. Mas ele derrapa. Anda mais do que deve. Já pensou se estivesse um transeunte em sua frente? Além de matar um cidadão, o motorista ainda corre o risco de destruir o carro. Depois ele vai pra cadeia e tem que pagar o conserto do automóvel (ou seja, não pode nem pagar a própria fiança). Imagina, então, se isso acontece com um ônibus cheio de gente dentro? Pelo menos, o inferno nos receberá de braços abertos.

Men at work

[#34] Não, men don't work em dias gelados e chuvosos. Pelo menos, não deveriam. Eu falo desses homens que trabalham como pedreiros, garis, eletricistas da rede pública, caras que asfaltam as ruas. É uma judiaria fazê-los "render" quando seus corpos estão ensopados e sujeitos a perigos terríveis como risco de serem atingidos por raios, risco de atropelamento, risco de pegar doenças, risco de simplesmente escorregar e cair no chão, bater a nuca e ficar tetraplégico, ou de quebrar uma costela e perfurar um pulmão, ou de deslocar um ombro. É foda trabalhar nessas condições, ISSO NÃO É HUMANO!

Cheirinho de chuva

[#33] Depois de dormir mal devido à posição fetal que se adquire nas noites de inverno, e devido também ao maldito barulho da chuva, a gente ainda tem que agüentar o "cheirinho de chuva". Não sei como tem gente que afirma gostar dessa porra. Pelo amor do santo cristo, que calçada não fica exalando um bafo quente e fedorento depois da chuva? Que nojo! E o que dizer das bocas de esgoto, então? O que dizer da cidade inteira que, depois de inundar, cheira a lixo (porque, de fato, HÁ lixo espalhado por todas as partes)? Cheirinho de chuva é o caralho. Chuva fede, e fede muito.

Barulhinho de chuva

[#32] Tem gente que adora "barulhinho de chuva", principalmente à noite.
Como se essa merda fosse uma canção de ninar.
Como se o telhado fosse de madeira, como nos filmes, quando o "barulhinho de chuva" ganha um aspecto bucólico.
Como se nunca caísse um trovão para transformar sonhos em pesadelos.
Como se não desse vontade de mijar o tempo inteiro.
Como se não desse vontade de chorar porque essa porra não termina nunca.
Como se não desse uma sensação de abandono enquanto a chuva cai.
Como se não desse uma raiva desgraçada quando a chuva se transforma num toró.
Como se a pessoa não fosse acordar de mau humor e, só de ver pela janela a calçada molhada, não ficasse com ódio pelo dia inteiro.
Como se não bastasse ser simplesmente chuva, ainda é um troço barulhento.

Tapetes limpos

[#31] Suponhamos que eu seja pobre e não tenha dinheiro para comprar um tapete novo, muito menos para deixar essa peça na lavanderia. E suponhamos que eu use o tempo do meu sono para lavar o tapete sujo. Vamos combinar que não é a melhor tarefa para se fazer quando se deveria estar dormindo. Aí eu vou lá e fico uns quinze minutos lavando o tapete (com as mangas arregaçadas!), as mãos encolhem e a pele fica quebradiça, o corpo não aquece o suficiente e disso resulta uma noite muito mal dormida: além de dormir pouco, durmo encolhido que nem um pinto dentro do ovo e acordo com dor nas costas, nas coxas, nos ombros...

Tapetes sujos

[#30] Quando não se mora sozinho, sempre tem alguém que vai reclamar da sujeira na casa. Mas o que se pode fazer quando se passa o dia inteiro na rua, pisando em poças de água, e se chega em casa deixando pegadas pelo chão? Ok, uma solução para isso seria colocar um tapete diante da porta de entrada, porém entra outra questão: o tapete vai acumular tanta sujeira e umidade que, depois de certo ponto, se não for trocado ou lavado, vai ser ele mesmo o causador das pegadas dentro de casa. Agora, trocar o tapete sujo por um limpo implica que o dono da casa tenha dois tapetes - ou seja, implica que ele deve ter grana para ter dois tapetes, deve ter tempo para lavar tapetes ou, pelo menos, tempo E grana para levar um tapete à lavanderia. Ou eu fico pobre, ou a casa fica suja. Ótimas opções, capital do inferno!

Jabutis

[#29] Eu queria ser um jabuti, que escolhe o verão para viver e no inverno morre temporariamente. E ainda é vegetariano, o bichinho. Espero que na próxima encarnação eu nasça jabuti. Esse bicho, sim, vai sobreviver ao apocalipse e reinar depois que a raça humana estiver extinta. Ninguém agüenta esse inverno maluco! Nós todos deveríamos nos rebelar e nos encolher em algum canto até que as chuvas passem, até que os ventos percam o fôlego, até que o frio crie tanta vergonha na cara que deseje jamais ter surgido!

Chuva e animais

[#28] Frio e chuva, a melhor combinação do inverno. Meus cachorros não podem sair de casa, não podem correr na grama, não podem esconder ossos no jardim. Até os cães entram em depressão! E não dá um dó ver os cavalos que puxam carroças apanhando (literalmente) para andar mais depressa, abaixo dessa chuva nojenta? Não quero nem imaginar a cena, senão fico com uma mistura de pena e raiva e acabo despejando em quem não merece.

As mangas e o sangue

[#27] Fui tirar sangue para fazer um exame. Acordei, tomei um banho, me vesti... E quando já estava com camadas de casaco o suficiente para não passar frio na rua, me dei conta de que as malditas mangas poderiam ser úteis para alguma coisa. Lá no laboratório, bastou arregaçar as mangas (que, por sinal, encolhidas e enrugadas, formando uma bola no meu braço, até deixavam meu bíceps mais valorizado) para localizar A Veia. A laboratorista nem precisou usar aquele canudo de borracha que "tranca" o sangue. Ótimo, não? As mangas, que tanto me incomodam, agora também servem para travar o fluxo sanguíneo e impedir que meus membros recebam ar.

Copa do Mundo

[#26] Foi o primeiro jogo do Brasil na Copa. Tudo bem que o jogo não foi grande coisa, não teve emoção (felizmente eu não vi a partida), mas no fim o Brasil ganhou. Na capital do inferno, nada de comemorações: nada de foguetes, nem de vuvuzelas, nem de luvas de papelão da cerveja nº 1, nada. Por quê? Porque estava um frio do cão na rua, e ninguém se atreveu a sair de casa. Nem pra comemorar.

Conta de luz

[#25] Como se não bastasse gastar luz elétrica para proteger-nos do escuro aqui nesta capital do inferno, ainda temos que gastar luz com aquecedores, condicionadores de ar, chuveiro com água quente, torneira com água quente... Obrigada, capital congelante, por me deixar pobre e miserável.

No escuro

[#24] Nessa horrível e escura cidade, o sol até que não se põe tão cedo. O problema é que ele não ilumina, sua luz é bloqueada pelas nuvens e seu calor não chega nem a aquecer nossas cabeças. Dentro de casa, a pior conseqüência disso é que as luzes têm que ser acesas de manhã e de tarde também. A luz solar só funciona das 11h às 16h, e olhe lá! Para ler um livro no final da tarde, não basta sentar na varanda ou próximo da janela. O mesmo vale para outras atividades que poderiam ser feitas com iluminação natural, vinda da janela, como fazer palavras cruzadas ou sudoku, sovar pão, comer pão, pintar quadros. Resultado disso: um aumento considerável no valor da conta de luz.

Quem tem mais?

[#23] O inverno desta capital torna as pessoas mais frias (metaforicamente, apesar de literalmente também), mais egoístas e mais competitivas. Quem está vestindo mais sobreposições hoje? Quem tem as botas mais modernas? Quem tem as maiores pantufas? Quem tem o edredom mais fofo? Quem tem o melhor aquecimento de água em casa? Quem tem a maior lareira? É uma competição silenciosa e infinda, sustentada por dois princípios do Contrato Social contemporâneo: a posse e a quantificação. Em regiões naturalmente quentes, esses princípios também existem, mas afetam mais o comportamento do que a atitude das pessoas. Aqui na capital do inferno, a nossa aparência muda e a nossa essência também, a ponto de tornar-nos insuportáveis uns aos outros.

Índios e o deus Sol

[#22] Já me dei conta de que os índios da América Latina não "evoluíram" como os seres bizarros da Europa simplesmente porque não era necessário. Não é à toa que em geral as comunidades mais primitivas chamam de Sol o seu deus principal. Aqui no inferno não existem - jamais existiram - índios. E, se existiram, tornaram-se canibais e extinguiram-se mutuamente, tamanha sua infelicidade diante da ausência de um deus digno de adoração. Abaixo de chuva, o que temos é mais chuva, uma chuva que nasce nos olhos e percorre o rosto e a alma inteira. Não há espaço para o deus Sol.

A solução para as mangas

[#21] Depois de tanto arregaçar mangas, cheguei à conclusão que o melhor é não ter mangas. Sim, o ideal é vivermos todos nus à beira da praia, convivendo com animais e sobrevivendo de plantas. Como os índios. Pronto, acabei de aderir à prática do naturismo. Mas quem disse que o naturismo é possível na capital do inferno?

Mangas no teclado

[#20] Como se não bastasse ter que arregaçar as mangas para escovar os dentes, lavar a louça e mexer com água em geral, descobri que também é preciso arregaçar as mangas para escrever no teclado. No caso, o melhor é descascar a cebola e tirar os casacos mais externos. Isso pode parecer ridículo, mas alguns milímetros (ou centímetros) de espaço entre as palmas das mãos e o teclado fazem diferença. Ainda mais para pessoas desprovidas de estatura, como eu, que sempre sofrem com cadeiras baixas e/ou mesas altas, depois ficam com tendinite por escrever no computador.